quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A Campanha da Legalidade PDF Imprimir E-mail
Nossa História - Legalidade
Brizola no Movimento da Legalidade Brizola no Movimento da Legalidade




A Legalidade foi o maior movimento popular no Brasil desde a Revolução de 30. A reação de Leonel Brizola ao golpe dos militares para impedir a posse de João Goulart na Presidência da República, após a renúncia de Jânio Quadros, no dia 25 de agosto de 1961, mudou a história política brasileira. A firmeza de Brizola no episódio fez dele um líder nacional e retardou a conspiração da direita que somente se concretizaria no golpe de 64, como o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, abortou o complô iniciado em 1950 para tornar inviável um governo nacionalista.
O dia 26 de agosto, data da Legalidade, faz parte do calendário de lutas do povo brasileiro pelo respeito aos seus direitos políticos.
Manhã do dia 25 de agosto de 1961, sexta-feira – Jânio Quadros renuncia. O vice-presidente, João Goulart, em missão oficial na República Popular da China, deve assumir a vaga, conforme prevê a Constituição em caso de renúncia. Vetados pelos ministros militares, o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili (PSD), assume a Presidência. Nesse momento, começa a resistência de Brizola pela posse de Jango e em defesa da Constituição. A Brigada Militar entra em prontidão, a população se concentra na frente do Palácio Piratini, na Praça da Matriz, centro de Porto Alegre. Da sacada do Palácio, Brizola faz seu primeiro pronunciamento garantindo a defesa do governo constitucional.
Manhã do dia 26 de agosto, sábado – Depois de uma noite tensa, milhares de pessoas se concentram na Praça da Matriz. O Ministério da Guerra manda bombardear o Palácio Piratini. A resistência é intensificada.
3h da madrugada do dia 27 de agosto, domingo – Brizola fala pelo rádio, denuncia o golpe contra Jango e pede mais mobilização. O Ministério da Guerra silencia as emissoras de Porto Alegre. Ao meio-dia, Brizola requisita a Rádio Guaíba e, em menos de uma hora, os transmissores são transferidos para os porões do Palácio Piratini. A Rádio Guaíba lidera uma rede de 104 emissoras gaúchas, catarinenses e paranaenses, a Cadeia da Legalidade, que transmite as mensagens do Governador. O III Exército tenta calar a Cadeia da Legalidade.
Madrugada do dia 28 de agosto, segunda-feira – O gen. Machado Lopes não acata a determinação para bombardear o Palácio. Às 11h, Brizola anuncia, pela Cadeia da Legalidade, a ordem do Ministério da Guerra para bombardear o Palácio Piratini. Pede que as crianças sejam levadas para fora da cidade e conclama todos à luta, na capital e no interior. Revólveres são requisitados da Fábrica Taurus. Um posto de recrutamento de populares no pavilhão da Avenida Borges de Medeiros, o “Mata-borrão”, distribui armamentos; barricadas protegem o Palácio Piratini; operários e estudantes acampam na Praça da Matriz. Na Base Aérea, os aviões são impedidos de levantar vôo. Um pouco antes das 12h, Brizola deixa os microfones da Cadeia da Legalidade e, em seu gabinete, recebe o Comandante do III Exército, que anuncia sua adesão à resistência democrática. De todos os lados da cidade, chega gente disposta a lutar. O alistamento é feito nas esquinas, calçadas e em frente aos prédios. Forma-se um exército de mais de 150 mil populares. As aulas são suspensas. Há adesão dos governadores do Paraná, Nei Braga, e de Goiás, Mauro Borges.
Dia 29 de agosto, terça-feira – Comitês pela Legalidade são instalados pela cidade. Os bancos fecham. São centenas os voluntários, mais de 400 estudantes se juntam ao movimento, assim como intelectuais e artistas; a Carris organiza batalhões voluntários; os tranviários lideram grupos da categoria. A população de Canoas se alista em Porto Alegre; em Novo Hamburgo, empregados e patrões unem-se contra o golpe; sindicatos de Caxias do Sul aderem em massa.
Dia 30 de agosto, quarta-feira – Machado Lopes é destituído do comando do III Exército. Brasília, sob censura, toma conhecimento da resistência no Sul. Batalhões operários estão em prontidão para a luta. Tropas do marechal Odylio Denys, Ministro da Guerra, marcham contra o Rio Grande do Sul. As tropas do III Exército preparam-se para invadir São Paulo.
Dia 31 de agosto, quinta-feira – Tropas dos militares golpistas ocupam duas cidades catarinenses. Jango chega a Montevidéo. Já está em andamento a proposta parlamentarista, depois que os ministros militares reconhecem a força da resistência comandada por Brizola.
Noite de 1º de setembro, sexta-feira – João Goulart chega na capital gaúcha. Porto Alegre o aguarda com uma impressionante manifestação popular com bandeiras e cartazes. A multidão sai às ruas para saudá-lo. Para os gaúchos, está afastada a possibilidade de uma guerra civil. Jango permanece até o dia 5 de setembro na cidade.
Dia 2 de setembro, sábado – Brizola denuncia o golpe parlamentarista, diz que a emenda é uma violação à Constituição e defende que o III Exército, a Brigada Militar e corpos de voluntários avancem em direção ao centro do país. Manifestações populares de inconformidade explodem por todos os lados. Jango silencia. Há rebelião na Aeronáutica, entra em ação a Operação Mosquito, que pretendia interceptar o avião presidencial. A posse de Jango é adiada para quarta-feira. O Congresso aprova a emenda constitucional n° 4 e fica instituído o sistema parlamentarista de governo e a realização de plebiscito.
Dia 5 de setembro, terça-feira – João Goulart desembarca em Brasília.
Dia 7 de setembro, quinta-feira – João Goulart é empossado Presidente da República.

O primeiro apelo à resistência
O Governo do Estado do Rio Grande do Sul cumpre o dever de assumir o papel que lhe cabe nesta hora grave da vida do País. Cumpre-nos reafirmar nossa inalterável posição ao lado da legalidade constitucional. Não pactuaremos com golpes ou violências contra a ordem constitucional e contra as liberdades públicas. Se o atual regime não satisfaz, em muitos de seus aspectos, desejamos é o seu aprimoramento e não sua supressão, o que representaria uma regressão e o obscurantismo.
A renúncia de Sua Excelência, o Presidente Jânio Quadros, veio surpreender a todos nós. A mensagem que Sua Excelência dirigiu ao povo brasileiro contém graves denúncias sobre pressões de grupos, inclusive do exterior, que indispensavelmente precisam ser esclarecidas. Uma Nação que preza a sua soberania não pode conformar-se passivamente com a renúncia do seu mais alto magistrado sem uma completa elucidação destes fatos. A comunicação do Sr. Ministro da Justiça apenas notifica o Governo do Estado da renúncia do Sr. Presidente da República. Por motivo dos acontecimentos, como se propunha, o Governo deste Estado dirigiu-se à Sua Excelência, o Sr. Vice- Presidente da República, Dr. João Goulart, pedindo seu regresso urgente ao País, o que deverá ocorrer nas próximas horas.
O ambiente no Estado é de ordem. O Governo do Estado, atento a esta grave emergência, vem tomando todas as medidas de sua responsabilidade, mantendo-se, inclusive, em permanente contato e entendimento com as autoridades militares federais. O povo gaúcho tem imorredouras tradições de amor à pátria comum e de defesa dos direitos humanos. E seu Governo, instituído pelo voto popular - confiem os riograndenses e os nossos irmãos de todo o Brasil – não desmentirá estas tradições e saberá cumprir o seu dever.”
(Sacada do Palácio Piratini, madrugada de 27 de agosto de 1961)
População armada
Um dia depois que estourou a crise, Brizola requisitou todos os estoques de armas de Porto Alegre. Alertou a Taurus, indústria gaúcha de revólveres, para que trabalhasse sem parar. Pediu que fosse intensificada a produção de metralhadoras leves. Enquanto se preparava para falar à população, pela Rádio Guaíba, ordenou que a Brigada Militar distribuísse os armamentos aos que se aglomeravam em frente ao Palácio. Em torno de 2 mil revólveres calibre 38 foram distribuídos, cada um com uma caixa de balas, mediante a assinatura de um recibo. Mais de 100 mil pessoas já estavam em frente ao Palácio.
Lealdade aos brasileiros no discurso dramático
Peço a vossa atenção para as comunicações que vou fazer. Muita atenção. Atenção, povo de Porto Alegre! Atenção, Rio Grande do Sul! Atenção, Brasil! Atenção, meus patrícios, democratas e independentes, atenção para estas minhas palavras!
Em primeiro lugar, nenhuma escola deve funcionar em Porto Alegre. Fechem todas as escolas. Se alguma estiver aberta, fechem e mandem as crianças para junto de seus pais. Tudo em ordem. Tudo em calma. Tudo com serenidade e frieza. Mas mandem as crianças para casa.
Quanto ao trabalho, é uma iniciativa que cada um deve tomar, de acordo com o que julgar conveniente. Quanto às repartições públicas estaduais, nada há de anormal. Os serviços públicos terão o seu início normal, e os funcionários devem comparecer como habitualmente, muito embora o Estado tolerará qualquer falta que, porventura, se verificar no dia de hoje.
Hoje, nesta minha alocução, tenho os fatos mais graves a revelar. O Palácio Piratini, meus patrícios, está aqui transformado em uma cidadela, que há de ser heróica, uma cidadela da liberdade, dos direitos humanos, uma cidadela da civilização, da ordem jurídica, uma cidadela contra a violência, contra o absolutismo, contra os atos dos senhores, dos prepotentes. No Palácio Piratini, além da minha família e de alguns servidores civis e militares do meu gabinete, há um número bastante apreciável, mas apenas daqueles que nós julgamos indispensáveis ao funcionamento dos serviços da sede do Governo. Mas todos os que aqui se encontram estão de livre e espontânea vontade, como também grande número de amigos que aqui passou a noite conosco e retirou-se, hoje, por nossa imposição.
Aqui se encontram os contingentes que julgamos necessários. Da gloriosa Brigada Militar – o Regimento Bento Gonçalves e outras forças. Reunimos aqui o armamento de que dispúnhamos. Não é muito, mas também não é pouco para aqui ficarmos preocupados frente aos acontecimentos. Queria que os meus patrícios do Rio Grande e toda a população de Porto Alegre, todos os meus conterrâneos do Brasil, todos os soldados da minha terra querida pudessem ver com seus olhos o espetáculo que se oferece.

Aqui nos encontramos e falamos por esta estação de rádio, que foi requisitada para o serviço de comunicação, a fim de manter a população informada e, com isso, auxiliar a paz e a manutenção da ordem. Falamos aqui do serviço de imprensa. Estamos rodeados por jornalistas, que teimam, também, em não se retirar, pedindo armas e elementos necessários para que cada um tenha oportunidade de ser também um voluntário, em defesa da legalidade.
Esta é a situação! Fatos os mais sérios quero levar ao conhecimento dos meus patrícios de todo o País, da América Latina e de todo o mundo. Primeiro: ao me sentar aqui, vindo diretamente da residência, onde me encontrava com minha família, acabava de receber a comunicação de que o ilustre General Machado Lopes, soldado do qual tenho a melhor impressão, me solicitou audiência para um entendimento. Já transmiti, aqui mesmo, antes de iniciar minha palestra, que logo a seguir receberei S. Exa. com muito prazer, porque a discussão e o exame dos problemas é o meio que os homens civilizados utilizam para solucionar os problemas e as crises. Mas pode ser que essa palestra não signifique uma simples visita de amigo. Que essa palestra não seja uma aliança entre o poder militar e o poder civil, para a defesa da ordem constitucional, do direito e da paz como se impõe neste momento, como defesa do povo, dos que trabalham e dos que produzem, dos estudantes e dos professores, dos juízes e dos agricultores, da família. Todos, até as nossas crianças desejam que o poder militar e o poder civil se identifiquem nesta hora para vivermos na legalidade. Pode significar, também, uma comunicação ao Governo do Estado da sua deposição. Quero vos dizer que será possível que eu não tenha oportunidade de falar-vos mais, que eu nem deste serviço possa me dirigir mais, comunicando esclarecimentos à população. Porque é natural que, se ocorrer a eventualidade do ultimato, ocorrerão, também, consequências muito sérias. Porque nós não nos submeteremos a nenhum golpe, a nenhuma resolução arbitrária. Não pretendemos nos submeter. Que nos esmaguem! Que nos destruam! Que nos chacinem, neste Palácio! Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra a vontade de seu povo. Esta rádio será silenciada tanto aqui como nos transmissores. O certo, porém, é que não será silenciada sem balas. Tanto aqui como nos transmissores, estamos guardados por fortes contingentes da Brigada Militar.
Destruição
Assim, meus amigos, meus conterrâneos e patrícios ficarão sabendo por que esta rádio silenciou. Foi porque ela foi atingida pela destruição e porque isso ocorreu contra a nossa vontade. E quero vos dizer por que penso que chegamos a viver horas decisivas.
Muita atenção, meus conterrâneos, para esta comunicação. Ontem à noite, o Sr. Ministro da Guerra, Marechal Odylio Denys, soldado no fim de sua carreira, com mais de 70 anos de idade, e que está adotando decisões das mais graves, as mais desatinadas, declarou através do “Repórter Esso” que não concorda com a posse do Sr. João Goulart, que não concorda que o Presidente constitucional do Brasil exerça suas funções legais! Porque, diz ele numa argumentação pueril e inaceitável, isso significa uma opção entre comunismo ou não. Isso é pueril, meus conterrâneos. Isso é pueril, meus patrícios! Não nos encontramos nesse dilema. Que vão essas ou aquelas doutrinas para onde quiserem. Não nos encontramos entre uma submissão à União Soviética ou aos Estados Unidos. Tenho uma posição inequívoca sobre isto. Mas tenho aquilo que falta a muitos anticomunistas exaltados deste País, que é a coragem de dizer que os Estados Unidos da América, protegendo seus monopólios e trustes, vão espoliando e explorando esta Nação sofrida e miserabilizada. Penso com independência. Não penso ao lado dos russos ou dos americanos. Penso pelo Brasil e pela República. Queremos um Brasil forte e independente. Não um Brasil escravo dos militaristas e dos trustes e monopólios norte-americanos. Nada temos com os russos. Mas nada temos também com os americanos, que espoliam e mantêm nossa Pátria na pobreza, no analfabetismo e na miséria.
Esses que muito elogiam a estratégia norte-americana querem submeter nosso povo a esse processo de esmagamento. Mas isso foi dito pelo Ministro da Guerra. Isso quer dizer que S. Exa. tomará todas as medidas contra o Rio Grande. Estou informado de que todos os aeroportos do Brasil, onde pousam aviões internacionais de grande porte, estão guarnecidos e com ordem de prender o Sr. João Goulart no momento da descida. Há pouco falei, pelo telefone, com o Sr. João Goulart em Paris, e disse a ele que todas as nossas palestras de ontem foram censuradas. Tenho provas. Censuradas nos seus efeitos, mas a rigor. A companhia norte-americana dos telefones deve ter gravado e transmitido os termos de nossas conversas para essas forças de segurança. Hoje eu disse ao Sr. João Goulart: “Decides de acordo com o que julgares conveniente. Ou deves voar, como eu aconselho, para Brasília, ou para um ponto qualquer da América Latina. A decisão é tua! Deves vir diretamente a Brasília, correr o risco e pagar para ver. Vem. Toma um dos teus filhos nos braços. Desce sem revólver na cintura, como um homem civilizado. Vem como para um País culto e politizado como é o Brasil, e não como se viesse para uma republiqueta, onde dominam os caudilhos, as oligarquias que se consideram todo-poderosas. Voa para o Uruguai, então, essa cidadela da liberdade, aqui pertinho de nós, e aqui traça os teus planos, como julgares conveniente”.
Vejam, meus conterrâneos, se não é loucura a decisão do Ministro da Guerra. Vejam, soldados do Brasil, soldados do III Exército! Comandante, General Machado Lopes! Oficiais, sargentos e praças do III Exército, guardiães da ordem da nossa Pátria. Vejam se não é loucura. Esse homem está doente! Esse homem está sofrendo de arteriosclerose ou outra coisa. A atitude do Marechal Odylio Denys é uma atitude contra o sentimento da Nação. Contra os estudantes e intelectuais, contra o povo, contra os trabalhadores, contra os professores, juízes, contra a Igreja. Ainda há pouco, conversando com S. Exª. Revª. Arcebispo D. Vicente Scherer, recebi a comunicação de que todos os cardeais do Brasil haviam decidido lançar proclamação pela paz, pela ordem legal, pela posse a quem constitucionalmente cabe governar o Brasil, pelo voto legítimo de seu povo. Essa proclamação está em curso pelo País. As Igrejas protestantes, todas as seitas religiosas clamam por paz, pela ordem legal. Não é a ordem do cemitério ou a ordem dos bandidos. Queremos ordem civilizada, ordem jurídica, a ordem do respeito humano. É isso.
Desatino e loucura
Vejam se não é desatino. Vejam se não é loucura o que vão fazer. Podem nos esmagar, num dado momento. Jogarão o País no caos. Ninguém os respeitará. Ninguém terá confiança nessa autoridade que será imposta, delegada de uma ditadura. Ninguém impedirá que este País, por todos os seus meios, se levante lutando pelo poder. Nas cidades do interior, surgirão as guerrilhas para defesa da honra e da dignidade, contra o que um louco e desatinado está querendo impor à família brasileira. Mas confio, ainda, que um homem como o General Machado Lopes, que é soldado, um homem que vive de seus deveres, como centenas, milhares de oficiais do Exército, como esta sargentada humilde, sabe que isso é uma loucura e um desatino e que cumpre salvar nossa Pátria. Tenho motivos para vos falar desta forma, vivendo a emoção deste momento, que talvez seja, para mim, a última oportunidade de me dirigir aos meus conterrâneos. Não aceitarei qualquer imposição.
Ordem só interessa a Brizola”
Desde ontem organizamos um serviço de captação de notícias por todo o território nacional. É uma rede de radioamadores, num serviço organizado. Passamos a captar, aqui, as mensagens trocadas, mesmo em código e por teletipos, entre o III Exército e o Ministério da Guerra. As mais graves revelações quero vos transmitir. Ontem, por exemplo - vou ler rapidamente, porque talvez isso provoque a destruição desta rádio -, o Ministro da Guerra considerava que a preservação da ordem ‘só interessa ao Governador Brizola’. Então, o Exército é agente da desordem, soldados do Brasil?! E outra prova da loucura! Diz o texto: ‘É necessário a firmeza do III Exército para que não cresça a força do inimigo potencial’.
Eu sou inimigo, meus conterrâneos?! Estou sendo considerado inimigo, meus patrícios, quando só o que queremos é ordem e paz. Assim como esta, uma série de outras rádios foi captada até no Estado do Paraná, e aqui as recebemos por telefone, de toda a parte. Mais de cem pessoas telefonaram e confirmaram. Vejam o que diz o General Orlando Geisel, de ordem do Marechal Odylio Denys, ao III Exército: ‘Deve o Comandante do III Exército impedir a ação que vem desenvolvendo o Governador Brizola’; ‘deve promover o deslocamento de tropas e outras medidas que tratam de restituir o respeito ao Exército’; ‘o III Exército deve agir com a máxima urgência e presteza’; ‘faça convergir contra Porto Alegre toda a tropa do Rio Grande do Sul que julgar conveniente’; ‘a Aeronáutica deve realizar o bombardeio, se for necessário’; ‘está a caminho do Rio Grande uma força-tarefa da Marinha de Guerra’, e ‘mande dizer qual o reforço de que precisa’. Diz mais o General Geisel: ‘Insisto que a gravidade da situação nacional decorre, ainda, da situação do Rio Grande do Sul, por não terem, ainda, sido cumpridas as ordens enviadas para coibir ação do Governador Brizola’.
Era isto, meus conterrâneos. Estamos aqui prestes a sofrer a destruição. Devem convergir sobre nós forças militares para nos destruir, segundo determinação do Ministro da Guerra. Mas tenho confiança no cumprimento do dever dos soldados, oficiais e sargentos, especialmente do General Machado Lopes, que, esperamos, não decepcionará a opinião gaúcha. Assuma, aqui, o papel histórico que lhe cabe. Imponha ordem neste País. Que não se intimide ante os atos de banditismo e vandalismo, ante esse crime contra a população civil, contra as autoridades. É uma loucura.
Chacina
Povo de Porto Alegre, meus amigos do Rio Grande do Sul! Não desejo sacrificar ninguém, mas venham para a frente deste Palácio, numa demonstração de protesto contra essa loucura e esse desatino. Venham, e se eles quiserem cometer essa chacina, retirem-se, mas eu não me retirarei e aqui ficarei até o fim. Poderei ser esmagado. Poderei ser destruído. Poderei ser morto. Eu, a minha esposa e muitos amigos civis e militares do Rio Grande do Sul. Não importa. Ficará o nosso protesto, lavando a honra desta Nação. Aqui resistiremos até o fim. A morte é melhor do que vida sem honra, sem dignidade e sem glória. Aqui ficaremos até o fim. Podem atirar. Que decolem os jatos! Que atirem os armamentos que tiverem comprado à custa da fome e do sacrifício do povo! Joguem essas armas contra este povo. Já fomos dominados pelos trustes e monopólios norte-americanos. Estaremos aqui para morrer, se necessário. Um dia, nossos filhos e irmãos farão a independência do nosso povo!
Um abraço, meu povo querido! Se não puder falar mais, será porque não me foi possível! Todos sabem o que estou fazendo! Adeus, meu Rio Grande querido! Pode ser este, realmente, o nosso adeus! Mas aqui estaremos para cumprir o nosso dever.”

Depoimento de Brizola
A renúncia de Jânio
Encontrava-me numa solenidade militar que se realizava no Parque Farroupilha. Chovia muito. Num dado momento, observei que um oficial se aproximou do General Machado Lopes, comandante do III Exército, e lhe fez uma comunicação no ouvido. Notei que a fisionomia do General carregou-se.
Dali a instantes, o General me informou que, devido às chuvas, iria abreviar a solenidade. Poucos minutos depois, o jornalista Hamilton Chaves, meu assessor de imprensa, transmitiu-me que a “France Press” difundia a notícia da renúncia do Presidente Jânio Quadros. Achei que era mais um boato entre os muitos que nos últimos dias circulavam sobre o governo do ex-Presidente.
Nada comentei com os militares. Retirei- me dali e fui-me instalar no gabinete do presidente da Caixa Econômica Estadual, na esquina da rua Dr. Flores com a Rua da Praia. Foi uma decisão inconsciente e instintiva. Talvez uma influência longínqua do velho guerreiro gaúcho Leonel Rocha, que sempre se localizava a uma distância prudente do acampamento geral.
Poucos minutos depois, o nosso inconfundível Carlos Contursi me oferecia, por telefone, um conjunto de outras informações que circulavam pelos jornais e agências de notícias, confirmando a renúncia.
As comunicações telefônicas com Brasília e o Rio de Janeiro eram, na época, muito precárias e demoradas. Tratei de colocar a Brigada Militar e a Polícia Civil de sobreaviso. Logo a seguir, em face de novas notícias, sempre no sentido da confirmação da renúncia, coloquei a Brigada Militar de prontidão rigorosa e dei ordem para que passasse a ocupar e controlar alguns pontos importantes. Preocupava-me, àquela altura, com a ordem pública e com o clima de incertezas que envolvia o País e, muito especialmente, com potenciais ameaças sobre o Governo do Rio Grande Sul.
A eventualidade de um golpe de Estado já era comentada naqueles dias, inclusive com muitas pessoas e notícias na imprensa atribuindo essa intenção ao Presidente e alguns círculos políticos e militares.
Foi após essas providências que tratei de comunicar, por telefone, com o General Machado Lopes. Ele me confirmou que o Presidente realmente havia renunciado. Fez até um comentário, dizendo que se ele desembarcasse no aeroporto seria, agora, um cidadão comum e não mais o Presidente (o Presidente Jânio Quadros, justamente naquele dia, deveria vir a Porto Alegre, para instalar simbolicamente o seu governo na capital gaúcha, como era uma de suas práticas administrativas).
Expliquei ao General que tomara as providências que me competiam, visando a resguardar a ordem pública. E mais ainda: afirmei-lhe que, se ocorresse a necessidade, voltaria a me comunicar com ele, para solicitar a colaboração de forças federais, nos termos da Constituição, caso os serviços do Estado viessem a se mostrar insuficientes. Combinamos de nos manter em contato.
Conversas ao telefone
A convicção de todos nós - àquela altura já realizáramos uma intensa troca de impressões entre os quadros do Governo e do partido - era a de que poderia ter ocorrido um golpe contra o Presidente
Jânio Quadros. Não se conseguia comunicação com Brasília, a não ser através de um sistema de rádio, também muito precário. A renúncia era um fato. O Presidente já havia se deslocado para São Paulo. Encontrava-se na Base Aérea de Cumbica. As notícias vindas de Brasília já nos davam as primeiras informações sobre um possível veto do Marechal Denys, Ministro da Guerra, ao Vice-Presidente João Goulart. Nossa primeira atitude pública foi no sentido da preservação da ordem constitucional.
E, como partíamos daquela suposição de um golpe contra o Presidente Jânio Quadros, passamos a nos definir em defesa de seu mandato constitucional. A muito custo, consegui me comunicar com a Base de Cumbica, em São Paulo, onde se encontrava o avião presidencial. Jânio Quadros não veio ao telefone. Falou comigo, em seu nome, o jornalista Carlos Castello Branco, Secretário de Imprensa da Presidência da República. Primeiro perguntei se o Presidente havia renunciado mesmo, ou se estávamos diante de um golpe contra ele. Castello respondeu-me que o Presidente havia renunciado.
Disse-lhe, então, que, mesmo tendo ocorrido a renúncia, desconfiávamos de que o Presidente havia sido constrangido a esse gesto e que, nesse caso, tratar-se-ia de um golpe. E mais: que nós, do Rio Grande do Sul, convidávamos Jânio Quadros para vir ao nosso Estado e, daqui, dirigir-se à Nação em defesa do seu mandato legítimo. O jornalista Castello Branco, depois de consultar o Presidente, transmitiu-me os agradecimentos, informando finalmente que não havia mais nada a fazer.
Como é natural e lógico, os rumos para a defesa da legalidade constitucional apontavam numa só direção, consumada a renúncia do Presidente: a posse do Vice-Presidente da República, seu substituto legal e constitucional, devia ser o procedimento legítimo. Ao nos deparar, naqueles instantes, com a circunstância de que o nosso conterrâneo e chefe de nosso partido, João Goulart, era o Vice-Presidente eleito, sentimos uma espécie de vibração cívica impossível de descrever.
Naqueles momentos, tomei a iniciativa de telefonar ao General Machado Lopes, Comandante do III Exército. Relatei-lhe o meu diálogo com o jornalista Castello Branco. E, na minha simplicidade, referi ao General, também, as notícias, que nos pareciam inconcebíveis, de que o Marechal Denys havia divulgado uma nota impondo “restrições” à investidura do Vice-Presidente João Goulart. Adiantei àquele chefe militar que era, para nós, inacreditável aquela atitude do Ministro da Guerra. Solicitei, então, ao General Machado Lopes, informações a respeito e indaguei qual era o seu pensamento sobre aquele quadro que já se configurava numa verdadeira crise.
Respondeu-me, o General: “Bom, bom, Governador, eu não posso me definir assim. Sou soldado e fico com o Exército”. O diálogo, para mim, estava encerrado. Apenas cumpri, ainda, o dever de lealdade de dizer ao General Machado Lopes que, se aquelas notícias se confirmassem, de minha parte e do Governo do Rio Grande do Sul, ficaríamos com a Constituição.
Em termos respeitosos, mas com escassas palavras, nós nos despedimos, encerrando aquela breve conferência telefônica. Desde então senti-me impedido de fazer novos contatos pelo telefone com o Comandante do III Exército. Daí por diante, passamos a atuar cada um para seu lado. Suas palavras foram suficientemente claras e peremptórias.
O início da resistência
Ao fim da tarde do dia 25 de agosto de 1961, encontrava-me no Palácio Piratini, que fervilhava de gente. Surgiram as primeiras manifestações nas ruas. Algumas protestando contra o golpe, outras em favor de Jânio Quadros e a maioria delas em defesa da legalidade da posse do Vice-Presidente. Foram aparecendo os primeiros oradores, inclusive na frente do Palácio.
Lembro-me que dirigimos, das janelas térreas do Piratini, nossas primeiras declarações aos manifestantes e aos jornalistas que, sequiosos por informações, perseguiam os acontecimentos. Passamos a noite em vigília. As notícias de Brasília e do Rio eram escassas, mas vinham chegando. Fizemos alguns contatos.
Os inesquecíveis deputados Ruy Ramos e Vítor Issler passaram a nos enviar informações, sistematicamente, via rádio, do escritório do Governo do Estado, na Capital Federal. Pela madrugada, já havíamos definido as nossas posições através de uma ampla troca de idéias com todos os nossos quadros do Governo e dirigentes do partido: defesa intransigente da ordem constitucional e investidura, na Presidência da República, de João Goulart, que deveria retornar imediatamente de sua viagem à China; resistência a todo custo contra qualquer tentativa de golpe de Estado; influir, por todos os modos ao nosso alcance, junto ao III Exército e aos seus altos comandos para que viessem a assumir uma posição em defesa da legalidade constitucional; fazer o máximo de contatos possíveis, com o mesmo propósito, a nível nacional, junto aos demais governadores, chefes militares e todas as instituições e líderes políticos e populares.
Com base nestas posições, passamos a fazer declarações, pela imprensa e pelo rádio, e a lançar nossos primeiros manifestos ao povo rio-grandense e, até onde podíamos chegar, à opinião pública do País.
O dia seguinte amanheceu com o País, virtualmente, sob o estado de sítio. O Deputado Mazzilli, Presidente da Câmara dos Deputados, havia “assumido” a Presidência da República. Teria sido uma iniciativa tomada no âmbito do Congresso, com intenções até pouco esclarecidas. Pois, se de um lado era o mecanismo constitucional, isto é, ausente do País o Vice-Presidente, era o presidente da Câmara dos Deputados quem devia assumir interinamente a Presidência da República, como o segundo na ordem de substituição; por outro lado, corria também – como se verificou depois - um certo oportunismo de políticos conservadores que, naquele instante, jogavam maliciosamente e, sobretudo, nada faziam em oposição ao veto que se levantava contra a investidura do Vice-Presidente constitucional.
Em verdade, o que se verificou mesmo foi o estabelecimento de um governo de fato, uma espécie de junta dos três ministros militares, sob a chefia do Marechal Odylio Denys, que ditava ordens e assumia todas as decisões. O Governador Carlos Lacerda, do Rio de Janeiro, desencadeou a repressão, com prisões e censura à imprensa.
Durante todo o dia, procuramos fazer contatos telefônicos fora do Estado. Conseguimos falar com o Governador Carvalho Pinto, de São Paulo. Encontrei-o frio e desinteressado, nenhuma resistência ao golpe. Falei com o Comandante do II Exército, em São Paulo, o qual declarou-me que tudo faria para que a crise não se agravasse. Consegui localizar o General Osvino Ferreira Alves, que se encontrava sem comando de tropa no Rio, e sem condições de se expressar ao telefone.
Com muita dificuldade, consegui um contato telefônico com o General Costa e Silva, que comandava o IV Exército, no Recife. Nosso diálogo foi duro e violento. Respondi com a mesma moeda às suas grosserias e agressividade. Localizei no Rio o General Kruel, também sem comando, e convidei-o para vir, de qualquer forma, para o Rio Grande do Sul. Dois ou três dias depois, estava chegando e permaneceu incógnito no Palácio Piratini. Era nossa intenção atribuir-lhe o comando militar da resistência, caso o General Machado Lopes não se decidisse a apoiar a Legalidade.
O Manifesto de Lott
Na boca da noite, o querido deputado Ruy Ramos colocou-nos em contato com o Marechal Henrique Teixeira Lott, transmitindo-nos o manifesto que aquele prestigioso chefe militar havia lançado em defesa da ordem e da Constituição. O texto do documento foi recebido e taquigrafado pelo companheiro Hélio Fontoura. Passamos a difundir o manifesto do Marechal Lott pela rádio. As emissoras que fizeram a transmissão eram silenciadas pelas autoridades do III Exército, mediante o confisco dos cristais de seus transmissores. Permaneceu no ar somente a Rádio Guaíba, porque os seus proprietários declararam que não podiam transmitir o manifesto. Sábado e domingo foram dias de muitas tensões e expectativas. Havia uma multidão em frente ao Palácio do Governo e na Praça da Matriz. Concentramos em Porto Alegre, no curso desses dias, todos os contingentes possíveis da Brigada Militar que se encontravam destacados nos municípios vizinhos. Fomos assumindo, desde logo, todas as posições que o Estado Maior da Brigada entendia conveniente. O Palácio e as áreas adjacentes foram se transformando numa verdadeira cidadela. As torres da Catedral foram ocupadas com ninhos de metralhadoras, pilhas de sacos de areia onde se fizessem necessários. Eram as tarefas do Regimento Bento Gonçalves, reforçados com outros contingentes da Brigada Militar, sob o comando do Coronel Átila Escobar.
A conselho do Marechal Lott, enviamos, num aviãozinho monomotor, um professor e coronel do Exército para um contato com o General Oromar Osório, comandante de uma divisão sediada em Santiago do Boqueirão. Mandou-nos dizer que já se encontrava sob rodas e que precisava urgente de 11 trens e 200 caminhões, recomendando que procurássemos entendimento com o General Machado Lopes. Também contatamos, a conselho do Marechal Lott, o General Pery Bevilácqua, em Santa Maria, que se deslocava a Porto Alegre para uma reunião convocada pelo Comandante do III Exército. Os trens e os caminhões foram fornecidos ao General Oromar Osório que, como todos sabem, atingiu nos dias seguintes o Estado do Paraná. Atuou com a mobilidade do General Patton na II Guerra Mundial.
A mobilização popular
A mobilização do povo gaúcho atingia um nível surpreendente. Em Porto Alegre e em todas as cidades, grandes e pequenas, já se formavam comitês de resistência e voluntariado. O espírito cívico do povo gaúcho impregnava todos os espaços e ia atingindo e envolvendo a tudo e a todos. Em frente ao palácio, era permanente uma multidão de dezenas de milhares de homens e mulheres de todas as idades e categorias sociais.
Constituiu-se, nessas horas, uma unidade impressionante do povo riograndense, seus quadros e lideranças de todas as atividades. Dos políticos daquela época e que ainda hoje estão em evidência, recordo-me que o senhor Paulo Brossard foi o único que agiu contra o Movimento da Legalidade, discretamente, na Cúria Metropolitana.
Havia uma preocupação profunda na alma de todos sobre a posição do III Exército. Nossa resistência poderia ter sido heróica, mas não tínhamos condições de enfrentar as forças federais, na hipótese delas decidirem investir contra nós. A nossa deliberação, porém, já era irreversível. Estávamos ao lado da ordem, da lei, da Constituição e da moral, dos direitos mais sagrados de nosso povo e da dignidade da própria Nação. O Rio Grande encontrava-se, já então, completamente bloqueado, sem nenhuma comunicação com o País.
O Vice-Presidente João Goulart em viagem de retorno, mas sem nenhum contato conosco. Chegavam muitos correspondentes estrangeiros, via Uruguai. Inúmeras pessoas conseguiam atingir o Rio Grande do Sul procedentes de outros estados para apresentar-se como voluntários.
Nessa noite de domingo para segunda-feira, tivemos os primeiros indícios de que se preparavam operações militares contra o Governo do Rio Grande do Sul. Mas foi nas primeiras horas do dia 28 de agosto, segunda-feira, que um radioamador nos transmitiu o que havia escutado de uma comunicação do General Orlando Geisel com III Exército, por ordem do Marechal Denys, determinando que fosse o Governo do Rio Grande do Sul compelido ao silêncio, com o emprego da força e do bombardeio pela Aviação, se necessário. A princípio, pensei que se tratasse de alguma brincadeira de mau gosto. Mas, logo em seguida, outra comunicação.
Vários radioamadores e o companheiro João Carlos Guaragna, dos Correios e Telégrafos, colocavam-nos diante de uma situação que até há poucos momentos parecia inconcebível. Novas mensagens foram captadas reiterando e exigindo o imediato cumprimento daquelas ordens. Pedi, ato contínuo, ao Doutor João Caruso, meu Secretário de Justiça, que redigisse um ato, portaria, decreto, fosse o que fosse, requisitando a Rádio Guaíba - única emissora que se encontrava no ar - sob o fundamento que necessitávamos, de emergência, daquele meio de comunicação para manter a ordem pública.
Determinei à Brigada Militar que ocupasse, imediatamente, com o máximo de forças, as torres da rádio e que as lanchas do Corpo de Bombeiros fossem armadas e ajudassem a guarnecer a ilha onde as torres se localizavam. O engenheiro Homero Simon, antigo técnico daquela rádio, foi incumbido de trazer os seus microfones para os porões do Palácio Piratini. Ocupamos também os estúdios da emissora.
Em pouco mais de uma hora, já estávamos irradiando do Palácio Piratini e pedi que, de imediato, anunciassem que o Governador tinha uma importante e urgente comunicação a fazer ao povo gaúcho e à opinião pública do País. As ondas curtas foram direcionadas para o território nacional.
Neste momento, o Palácio recebeu um telefonema do Quartel-General do III Exército, pelo qual o General Machado Lopes solicitava ser recebido pelo Governador, com a máxima urgência. Deviam ser 10h30min da manhã. Marquei audiência para às 12h. Minha primeira impressão era a de que o General vinha me apresentar uma espécie de ultimato. Lembrei-me do golpe de 45, quando se procedeu dessa forma com o General Ernesto Dornelles, embora em circunstâncias diferentes. Marquei a audiência para as 12h, porque desejava informar à população o que se passava e, principalmente, tendo em conta a nossa decisão de resistir, definitiva e irrevogável.
A Cadeia da Legalidade
Quando me dirigi para os porões do Palácio, acompanhado do Subchefe da Casa Militar, o então Major Emílio Neme, que permanecia ao meu lado em todos os momentos, onde já se encontravam os microfones e instalações de rádio, alguns jornalistas já me davam conta, embora em observações confusas, de que, possivelmente, o comando do III Exército se pronunciaria em favor da legalidade. Quando me preparava para falar, o engenheiro Homero Simon mostrou-me uma pequena luz vermelha, com a observação de que, enquanto aquela luz estivesse acesa, estaríamos
no ar.
Falei de improviso e sob grande tensão, medindo, tanto quanto possível, as minhas palavras. Era muito delicada a situação. Precisávamos mobilizar ao máximo. Somar tudo o que pudéssemos, porém, sem criar nenhum tipo de problema ou constrangimento que viesse dificultar a integração do III Exército na defesa da legalidade. Pensamos em definir a nossa posição de resistência.
Denunciamos e levamos ao conhecimento da população as ordens que vinham de Brasília: ‘Deve o Comando do III Exército impedir a ação que vem desenvolvendo o governador Leonel Brizola. O III Exército deve agir com a máxima urgência e presteza, fazendo convergir contra Porto Alegre toda a tropa do Rio Grande do Sul que julgar conveniente. A Aeronáutica deve realizar o bombardeio, se for necessário. Está a caminho do Rio Grande uma força-tarefa da Marinha de Guerra, e mande dizer qual o reforço de que precisa. Insisto que a gravidade da situação nacional decorre, ainda, da situação do Rio Grande do Sul’.
Demonstramos, perante a população, os desatinos em que estavam incorrendo as autoridades de Brasília. Fizemos um último apelo ao General Machado Lopes e aos Generais comandantes do III Exército. Recomendamos à população que se afastasse daquela área, especialmente que retirasse dali todas as crianças. Juntamente com Neusa, minha mulher, lá estavam milhares de mulheres dentro e fora do Palácio, que se recusaram a se afastar. As crianças foram retiradas, mas o povo lá permaneceu. E, a cada momento, crescia a multidão.
Devia ser mais de cem mil pessoas naqueles momentos. A nossa sorte estava lançada. Afirmamos que resistiríamos até o fim e, se tivéssemos de sucumbir, ali haveria de permanecer o nosso protesto, lavando a honra e a dignidade do povo brasileiro.
A partir desse momento, começou a funcionar a Cadeia da Legalidade, com a integração de uma quantidade crescente de pequenas emissoras às transmissões da Rádio Guaíba. Centenas de jornalistas, nacionais e estrangeiros, sob a coordenação de Hamilton Chaves, desenvolveram um admirável trabalho que sensibilizou o povo brasileiro, civis e militares, por todos os quadrantes da Nação.
Nunca tive oportunidade de ouvir uma gravação deste pronunciamento. Não sei mesmo se existe, ou se alguma pessoa possui esta gravação. Gostaria de ouvi-la. Somente agora, depois de 25 anos, é que consegui ler uma transcrição da imprensa da época.
A definição do III Exército
Na hora aprazada recebi, em meu gabinete no andar superior do Palácio Piratini, o General Machado Lopes, que se fazia acompanhar de algumas altas patentes do Exército. O General, ao meu lado, na extremidade de uma mesa de reuniões, de imediato tomou a palavra, comunicando-me que o Comando e todos os Generais do III Exército haviam decidido não aceitar nenhuma solução para a crise, fora da Constituição. Levantei-me e apertei a mão do General, dizendo-lhe que, daquele momento em diante, passava a Brigada Militar ao seu comando. Achavam-se presentes, além do Doutor João Caruso, o professor Francisco Brochado da Rocha e o Coronel Moojen, Comandante da Brigada Militar. Terminada a reunião, fiz questão de acompanhar o General Machado Lopes até a porta do Quartel-General do III Exército.
A partir do momento em que o III Exército assumiu aquela definição, começou a pender a balança em favor da Constituição e da Legalidade. Criou-se uma situação de resistência em todo o País. As mensagens da Cadeia da Legalidade atingiram as consciências em toda a parte. Todos procuravam sintonizar as ondas curtas da Rádio Guaíba. Estabeleceram-se novas correlações de força. Criou-se um ambiente de apoio e solidariedade generalizada de parte da população de todo o País. Foi nesse momento que começou a prevalecer a nova investida de ufanismo, envolvendo o próprio Vice-Presidente João Goulart, já então na Europa, a caminho do Brasil, que resultou na adoção de um mal-ajeitado regime parlamentarista, de tão funestas consequências. Sempre achei que se deveria evitar o confronto que se apresentava iminente.
Era necessário encontrar soluções para a crise, mas de nenhuma forma violando a Constituição, como fez o próprio Congresso, numa madrugada, ao instituir aquele regime, retirando poderes legítimos do Presidente. Esse episódio contém, sem nenhuma dúvida, lições e ensinamentos de grande valor e da maior profundidade. Não sou eu, porém, o mais indicado para trazê-los à tona. Tenho feito as minhas reflexões. É possível que mais adiante ainda venha a escrever um texto expondo as minhas observações”.
(Texto de Leonel Brizola, extraído do livro “Legalidade, 25 anos - A Resistência que levou Jango ao Poder”, Ed. Rafael Guimarães, A. Porto, Ricardo Stricher e Sérgio Quintana. Porto Alegre, 1986)
Hino da Legalidade
(Lara de Lemos, Demóstenes Gonsalez, Paulo César Pereio)
Avante brasileiros de pé
Unidos pela liberdade
Marchemos todos juntos com a bandeira
Que prega a lealdade
Protesta contra o tirano
Se recusa à traição
Que um povo só é bem grande
Se for livre sua Nação

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