Esgoto é matéria-prima da água bebida pelos gaúchos
Comunidade científica já começa a questionar até que ponto essa água é realmente saudável para humanos.
A cada segundo, a população de Porto Alegre despeja 3 mil litros de esgoto no Guaíba e no Rio Gravataí. No final de um dia, a imundície que a cidade transferiu para o manancial está na casa das centenas de milhões de litros. A esse volume somam-se dejetos domésticos, agrícolas e industriais produzidos por outros 5 milhões de gaúchos e que chegam depois de viajar pelos rios que alimentam o Guaíba. Essa imensa cloaca a céu aberto é a matéria-prima da água que bebemos.
A população da metrópole só sentiu na pele a gravidade da situação ao longo da última década, quando uma água malcheirosa e com gosto de terra começou a sair das torneiras. Em oito dos últimos nove anos, sempre entre o verão e o outono, algas conhecidas como cianobactérias proliferaram-se no Guaíba, impregnando-o de substâncias que conferem o sabor e o odor ruins. As algas floresceram porque encontraram alimento em abundância: o fósforo e o nitrogênio presentes no esgoto.
Leia mais: > Porto Alegre apresenta o maior índice de cafeína na água> Ozônio é alternativa contra o gosto de terra da água de Porto Alegre
Desde então, o sistema de tratamento de água de Porto Alegre está pagando caro — ainda mais caro do que o habitual — por ter um manancial tão poluído. Desde 2006, o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) gastou mais de R$ 15 milhões só para aparelhar suas estações a enfrentar a presença do sabor e do cheiro.
Essa é só uma parte da despesa extra. Por causa das cianobactérias, o investimento necessário para tratar uma mesma quantidade de água multiplicou-se em Porto Alegre. Levantamento feito pelo Dmae a pedido de Zero Hora aponta que, ao longo de 2012, o custo tem sido 224% maior por causa da necessidade de eliminar as substância indesejáveis. Tratar a água ficou três vezes mais caro. De R$ 70 desembolsados pelo departamento a cada mil metros cúbicos nos períodos sem floração, a conta subiu para R$ 226,80. De janeiro a maio, em lugar de gastar R$ 5,4 milhões, o Dmae gastou R$ 17,8 milhões. Em apenas cinco meses, o custo-alga foi de R$ 12 milhões — o aumento não é repassado ao consumidor.
Mesmo com todo esse investimento, moradores reclamam: o resultado final continua intragável. A Escola Estadual Presidente Roosevelt, do Menino Deus, por exemplo, juntou doações dos pais e redirecionou o dinheiro do xerox para abastecer com bombonas de água mineral as salas de aula de 300 crianças. Foi uma medida para evitar a desidratação, porque os pequenos passaram a fugir do bebedouro.
— Se a água está ruim, eles não bebem e também não comem direito — explica a vice-diretora, Maria Ines Taborda.
A crise provocada pela floração das algas escancarou uma realidade desagradável: não tratamos água, tratamos esgoto para transformá-lo em água potável — e a comunidade científica já começa a questionar até que ponto essa água é realmente saudável para humanos. Não é um problema só de Porto Alegre. As cianobactérias superpovoaram o Guaíba não porque ele seja mais poluído, mas porque algumas de suas áreas oferecem condições propícias para as florações, como baixa profundidade e pouco movimento.
No entanto, gaúchos que nunca sentiram o gosto de terra são abastecidos por água potável captada em rios com contaminação muito superior à do Guaíba. Um bom exemplo pode ser encontrado na própria Capital. Centenas de milhares de moradores da Zona Norte têm sido poupados do sabor desagradável _ mas recebem água que foi captada perto de rios moribundos, como o Gravataí e o Sinos, onde a qualidade do manancial está muito mais degradada.
Para minimizar o efeito causado pelas cianobactérias, o Dmae recorre a uma tecnologia conhecida como adsorção por carvão ativado. Na quantidade adequada, o carvão, adicionado à água coletada do Guaíba, consegue reter em seus poros, como uma esponja, a maior parte das substâncias que provocam o cheiro e o gosto desagradáveis — chamadas de geosmina e MIB. Em um único dia, até seis toneladas de carvão chegam a ser usadas nas estações de tratamento de água. Desde o começo do ano, o Dmae já usou 287,4 toneladas — o equivalente ao peso de 360 Fuscas.
— Além disso, buscamos, em paralelo, processos associados para minorar o problema, com a adição de dióxido de cloro e peróxido de hidrogênio, que conseguem eliminar a matéria orgânica — explica Renato Rossi, diretor da Divisão de Tratamento do Dmae.
Mesmo assim, o gosto pode persistir, como observa o professor Sidney Seckler Ferreira Filho, do Departamento de Engenharia Hidráulica e Sanitária da Universidade de São Paulo (USP). Nos anos 80, ele enfrentou o desafio de reduzir o gosto deixado pelas algas em um sistema muito maior do que o de Porto Alegre: o de São Paulo. Desde então, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) utiliza a tecnologia do carvão ativado em estações que fornecem água, hoje, para 8,5 milhões de pessoas.
— A eficácia não é total. O carvão consegue remover no máximo 90% dos componentes que causam odor e sabor. E o resultado é muito relativo, porque cada pessoa tem um limiar de gosto diferente. No fundo, a questão é sempre a seguinte: todo o problema seria evitado se houvesse tratamento de esgoto. A companhia que trata a água paga o pato pela falta de investimento em saneamento. E sai muito mais caro tratar água depois do que tratar esgoto antes — afirma o pesquisador.
Ainda que o problema não seja exclusivo de Porto Alegre e que o Dmae utilize a tecnologia mais disseminada, a permanência do gosto ruim é alvo de críticas — e não só por parte dos usuários. Representante da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes) na comissão que redigiu a portaria do Ministério da Saúde responsável por regular a qualidade da água e os padrões de potabilidade, a engenheira química Ellen Pritsch entende que a existência de gosto não é aceitável.
— Se a água tem sabor e odor, mesmo que não faça mal, não serve para consumo. Esse é o caso de Porto Alegre, onde os períodos de duração do problema são cada vez maiores. Nesse sentido, a portaria deixa clara a responsabilidade de agir dos órgãos de Vigilância Sanitária. Nunca é barato tratar água poluída. Temos tecnologias que tiram o gosto e o cheiro da água. O tratamento do Dmae é mais tradicional. Não tem como atingir esse objetivo de forma plena — diz ela.
A população da metrópole só sentiu na pele a gravidade da situação ao longo da última década, quando uma água malcheirosa e com gosto de terra começou a sair das torneiras. Em oito dos últimos nove anos, sempre entre o verão e o outono, algas conhecidas como cianobactérias proliferaram-se no Guaíba, impregnando-o de substâncias que conferem o sabor e o odor ruins. As algas floresceram porque encontraram alimento em abundância: o fósforo e o nitrogênio presentes no esgoto.
Leia mais: > Porto Alegre apresenta o maior índice de cafeína na água> Ozônio é alternativa contra o gosto de terra da água de Porto Alegre
Desde então, o sistema de tratamento de água de Porto Alegre está pagando caro — ainda mais caro do que o habitual — por ter um manancial tão poluído. Desde 2006, o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) gastou mais de R$ 15 milhões só para aparelhar suas estações a enfrentar a presença do sabor e do cheiro.
Essa é só uma parte da despesa extra. Por causa das cianobactérias, o investimento necessário para tratar uma mesma quantidade de água multiplicou-se em Porto Alegre. Levantamento feito pelo Dmae a pedido de Zero Hora aponta que, ao longo de 2012, o custo tem sido 224% maior por causa da necessidade de eliminar as substância indesejáveis. Tratar a água ficou três vezes mais caro. De R$ 70 desembolsados pelo departamento a cada mil metros cúbicos nos períodos sem floração, a conta subiu para R$ 226,80. De janeiro a maio, em lugar de gastar R$ 5,4 milhões, o Dmae gastou R$ 17,8 milhões. Em apenas cinco meses, o custo-alga foi de R$ 12 milhões — o aumento não é repassado ao consumidor.
Mesmo com todo esse investimento, moradores reclamam: o resultado final continua intragável. A Escola Estadual Presidente Roosevelt, do Menino Deus, por exemplo, juntou doações dos pais e redirecionou o dinheiro do xerox para abastecer com bombonas de água mineral as salas de aula de 300 crianças. Foi uma medida para evitar a desidratação, porque os pequenos passaram a fugir do bebedouro.
— Se a água está ruim, eles não bebem e também não comem direito — explica a vice-diretora, Maria Ines Taborda.
A crise provocada pela floração das algas escancarou uma realidade desagradável: não tratamos água, tratamos esgoto para transformá-lo em água potável — e a comunidade científica já começa a questionar até que ponto essa água é realmente saudável para humanos. Não é um problema só de Porto Alegre. As cianobactérias superpovoaram o Guaíba não porque ele seja mais poluído, mas porque algumas de suas áreas oferecem condições propícias para as florações, como baixa profundidade e pouco movimento.
No entanto, gaúchos que nunca sentiram o gosto de terra são abastecidos por água potável captada em rios com contaminação muito superior à do Guaíba. Um bom exemplo pode ser encontrado na própria Capital. Centenas de milhares de moradores da Zona Norte têm sido poupados do sabor desagradável _ mas recebem água que foi captada perto de rios moribundos, como o Gravataí e o Sinos, onde a qualidade do manancial está muito mais degradada.
Para minimizar o efeito causado pelas cianobactérias, o Dmae recorre a uma tecnologia conhecida como adsorção por carvão ativado. Na quantidade adequada, o carvão, adicionado à água coletada do Guaíba, consegue reter em seus poros, como uma esponja, a maior parte das substâncias que provocam o cheiro e o gosto desagradáveis — chamadas de geosmina e MIB. Em um único dia, até seis toneladas de carvão chegam a ser usadas nas estações de tratamento de água. Desde o começo do ano, o Dmae já usou 287,4 toneladas — o equivalente ao peso de 360 Fuscas.
— Além disso, buscamos, em paralelo, processos associados para minorar o problema, com a adição de dióxido de cloro e peróxido de hidrogênio, que conseguem eliminar a matéria orgânica — explica Renato Rossi, diretor da Divisão de Tratamento do Dmae.
Mesmo assim, o gosto pode persistir, como observa o professor Sidney Seckler Ferreira Filho, do Departamento de Engenharia Hidráulica e Sanitária da Universidade de São Paulo (USP). Nos anos 80, ele enfrentou o desafio de reduzir o gosto deixado pelas algas em um sistema muito maior do que o de Porto Alegre: o de São Paulo. Desde então, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) utiliza a tecnologia do carvão ativado em estações que fornecem água, hoje, para 8,5 milhões de pessoas.
— A eficácia não é total. O carvão consegue remover no máximo 90% dos componentes que causam odor e sabor. E o resultado é muito relativo, porque cada pessoa tem um limiar de gosto diferente. No fundo, a questão é sempre a seguinte: todo o problema seria evitado se houvesse tratamento de esgoto. A companhia que trata a água paga o pato pela falta de investimento em saneamento. E sai muito mais caro tratar água depois do que tratar esgoto antes — afirma o pesquisador.
Ainda que o problema não seja exclusivo de Porto Alegre e que o Dmae utilize a tecnologia mais disseminada, a permanência do gosto ruim é alvo de críticas — e não só por parte dos usuários. Representante da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes) na comissão que redigiu a portaria do Ministério da Saúde responsável por regular a qualidade da água e os padrões de potabilidade, a engenheira química Ellen Pritsch entende que a existência de gosto não é aceitável.
— Se a água tem sabor e odor, mesmo que não faça mal, não serve para consumo. Esse é o caso de Porto Alegre, onde os períodos de duração do problema são cada vez maiores. Nesse sentido, a portaria deixa clara a responsabilidade de agir dos órgãos de Vigilância Sanitária. Nunca é barato tratar água poluída. Temos tecnologias que tiram o gosto e o cheiro da água. O tratamento do Dmae é mais tradicional. Não tem como atingir esse objetivo de forma plena — diz ela.
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